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terça-feira, 26 de agosto de 2014

Ao "prender" médico, Rede Record revela promiscuidade no jornalismo

A Rede Record dedicou 48 minutos do último "Domingo Espetacular" para se vender como responsável pela prisão do "médico mostro" Roger Abdelmassih (foto acima), na semana passada, em Assunção, capital do Paraguai. O que era para ser uma grande reportagem, o furo do ano, se revelou uma propaganda equivocada. Só faltou a Record dizer com todas as letras que foi ela que prendeu "o homem mais procurado do país", como se fosse papel do jornalismo investigativo montar cerco a cidadãos, mesmo que condenados pela Justiça.
A reportagem do "Domingo Espetacular" também escancarou a promiscuidade que baseia muitas das relações entre repórteres e suas fontes de informação, algo que não é exclusivo do jornalismo policial muito menos da Record.
É inegável que o produtor Leandro Sant'Ana fez um grande trabalho e que a Record prestou um serviço ao país. Mas não cabe aos jornalistas e aos radiodifusores substituir o poder público, fazer o trabalho da polícia. Jornalistas devem, sim, investigar o paradeiro de foragidos. Porém é no mínimo discutível se devem fazer dessa investigação uma ação conjunta com a polícia, culminando com o "espetáculo" da prisão.
A reportagem da Record passou a ideia que Roger Abdelmassih, condenado pelo estupro de dezenas de pacientes, só foi preso graças ao trabalho de Sant'Ana, que investigou o paradeiro do médico nos últimos três anos. A Polícia Federal, o Ministério Público e investigação particular da associação de vítimas de Abdelmassih ajudaram, mas a Record foi decisiva, segundo a própria Record.
De acordo com o "Domingo Espetacular", foi uma pista colhida pela Record com um padre que revelou que Abdelmassih usava o nome de Ricardo Galeano e vivia em Assunção com a mulher, Larissa, e dois filhos gêmeos. O mesmo padre fez o produtor da Record chegar até a casa de Maria Pidal, uma amiga de orações do falso Galeano.
Sant'Ana foi até a casa de Pidal, mas não a abordou na primeira visita. No mesmo dia, sem mostrar como chegou a essa informação, gravou "as primeiras imagens da casa suspeita de abrigar o fugitivo número um do Brasil". "Hora de voltar ao Brasil e planejar os próximos passos", anunciou o narrador, como se a Record participasse de uma operação conjunta com a PF e o Ministério Público de São Paulo.
E participava. Diz a própria Record no longo videotape: "Decidimos voltar a Assunção. Na mesma data, o setor de inteligência da Polícia Federal, destaca um delegado que acompanhava a investigação para também viajar ao Paraguai". Record e o delegado, Marcos Paulo Pimentel, chegaram a Assunção no mesmo dia.
Enquanto o delegado Pimentel articulava o cerco Abdelmassih com a polícia paraguaia, a Record buscava flagrá-lo nas ruas. No dia do terceiro aniversário dos filhos do médico, a Record segue Maria Pidal e "confirma o paradeiro" do fugitivo, a suntuosa casa que já tinha sido registrada dias antes.
No manhã seguinte, a Record segue Larissa Maria Sacco, a mulher de Abdelmassih, até a escola dos filhos. O produtor da Record telefona para o delegado da PF: "Doutor, acabaram de chegar aqui dois bolos, um carro cheio de coisa... e a Larissa".
No dia 15 de agosto, a Record faz imagens de Abdelmassih "andando tranquilamente" em Assunção. "As imagens foram cedidas pelo produtor Leandro Sant'Ana às autoridades paraguaias como colaboração às investigações oficiais", informou o narrador.
Como recompensa, Sant'Ana ganhou uma carona no aviãozinho da Força Aérea do Paraguai que transportou Abdelmassih para Ciudad del Este, na fronteira com Foz do Iguaçu. A carona e o diálogo a seguir, gravado dentro do avião e exibido pelo "Domingo Espetacular", são reveladores de uma comprometedora relação entre imprensa e fonte de informação:

Adelmassih: "Você também é da Polícia Federal?"
Sant'Ana: "Não."
Abdelmassih: "Você é o quê?"
Sant'Ana: "Jornalista."
Abdelmassih: "De onde você é?"
Sant'Ana: "Da Record."
Abdelmassih: "Ah, então... Como você chama?"
Sant'Ana: "Leandro."
Abdelmassih: "Então você que é o Leandro? Ah... Você que descobriu tudo."
Sant'Ana: "Eu investiguei, né, mas quem descobriu foram eles".

Nesse ponto, Sant'Ana foi verdadeiro. Sem a Polícia Federal e o Ministério Público, Abdelmassih não teria sido preso. É difícil acreditar que a PF e o MP, com todos os instrumentos que possuem, não conseguissem localizar no Paraguai um foragido da Justiça, que dependessem do talento de um repórter para fazê-lo. Com as câmeras e holofotes de uma rede de TV que se notabiliza pela ampla cobertura policial, tudo fica mais fácil, é claro.


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